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6 - Um ramo de (des)confiança

Atualizado: 19 de out. de 2021

O contato de suas costas no muro gélido dificultava ainda mais sua respiração já sôfrega, levou a mão direita sob seu casaco até o ombro e sentiu a dor se alastrando a partir do ponto tocado, retirou a mão e seus dedos estavam manchados de sangue, a lâmina não tinha ido tão profunda quanto o seu portador queria.

Irina precisava sair das ruas, porém seu apartamento não era uma opção, estariam lá esperando por ela e ela sabia disso pois é o mesmo que faria se estivesse do outro lado da situação, então decidiu ir para a casa segura que era relativamente próxima ao Muro. Andava pelas ruas poucos iluminadas e nem um pouco desérticas, ela estava desacreditada de sua ingenuidade, de ter caído na lábia da francesa.

O primeiro encontra havia acontecido ao acaso em um bar, Irina estava lá observando um alvo americano e entre uma caneca e outra de cerveja ela viu a outra jovem, sentada em frente ao balcão tomando uma taça de vinho com um sorriso brincando nos lábios e um olhar sedutor que quando alcançou Irina, ela sentiu-se hipnotizada. A russa acabou por escolher continuar sua investigação no dia seguinte e decidiu se aproximar da jovem.

— Devo experimentar desse vinho ou melhor continuar com a minha cerveja? – apoiou a lateral do corpo no balcão.

— Pelo seu sotaque acredito que o que lhe cairia bem seria uma boa vodca.

Atenta aos detalhes, pensou a russa.

Aquele primeiro encontro gerou um segundo, terceiro e quando percebeu já estavam se encontrando há quatro meses. Durante todo o tempo que estiveram juntas ela conseguiu esconder que trabalhava para a KGB e, também conseguiu manter a jovem fora dos olhos dos demais agentes que faziam de Berlim um centro de jogos de espionagem e seguia fazendo seu trabalho, era isso que ela acreditava na época.

Se apertou mais ao casaco, virou a última esquina e já avistou a fachada da casa segura, das janelas do térreo e do andar de cima não vinha nenhuma luz, estranhou, Stanis sempre estava lá, era ele quem recebia as ordens vindas de Moscou. Pescou no bolso a cópia das chaves que recebeu das mãos dele quando aterrissou em Berlim, colocou na fechadura, girou e entrou apressada fechando a porta atrás de si. Olhou de um lado para o outro até que ouviu um ruído do degrau, levantou o olhar e deu de cara não com seu chefe, mas com uma mulher de casaco cor de creme e cabelos castanhos presos em um coque bem feito.

Um instante de hesitação e confusão logo deixaram o rosto de Irina e ela prontamente buscou a arma nas costas presas ao cinto, apontou e mirou na testa da outra.

— O que faz aqui e quem é você! – ignorando a arma apontada para si a mulher terminou de descer os degraus parando em frente a russa e falou calma.

— Seu chefe está morto lá no andar de cima e antes que atire em mim, acredito que gostaria de saber o que tenho a contar.

Sem esperar que a espiã falasse algo ela seguiu para o cômodo ao lado, uma sala de estar lotada de estantes com caixas de arquivo e um sofá vinho acompanhado de uma poltrona no mesmo estilo. Se sentou na ponta do móvel, cruzou as pernas e aguardou que Irina viesse até ela. A russa abaixou a arma, porém a manteve em punho, andou até a poltrona e se acomodou.

— Vejo que esta é uma noite usual para você, mas veja, alguns acontecimentos desta noite poderiam ter sido evitados, já outros apenas foram adiantados. – alisou a saia com as duas mãos e prosseguiu: — Ao contrário do que te fizeram pensar, Mila não era uma agente do governo francês.

Aquela possível informação surpreendeu Irina, se fosse verdade qual seria o interesse na CIA em matá-la?

— Não se engane, nós não temos nenhum motivo para eliminar você ou sua namorada, talvez você por seu serviço, mas as coisas irão mudar em breve, enfim, o seu governo – apontou para a espiã – está doido para uma desculpa para fugir dos acordos que vem tratando fora dos holofotes.

— Está dizendo que a tentativa de assassinato que sofri e a morte de Mila foram planejadas pela minha agência? Isso é loucura.

Claro que a mulher estava ali para manipulá-la, ela era uma agente vital para a operação, tinha os contatos e as informações. E foi ali que ela parou, o entendimento caindo sobre ela, entretanto ainda assim não fazia sentido matarem Mila, nada tinha sido passado para ela, precisava saber o motivo.

— Por que matar Mila? Ela era apenas uma escritora. – A raiva dominava seus pensamentos. Algo novo para ela, nesses meses que estivera acompanhada da jovem ela seriamente cogitava seguir com ela para a França quando terminasse seu serviço ali.

— Você conhece sobre a família dela?

— Não, mas acho que você vai me contar agora, certo? – respondeu ríspida.

Ignorando o tom de voz da outra a mulher voltou a falar:

— O irmão dessa jovem é um dos cabeças dos franceses aqui. Estou ciente que eles não se encontravam, mas Berlim é um lugar perigoso para qualquer um nesses tempos.

— Quero o nome de quem a matou e você vai me dar essa informação de boa-fé – levantou e novamente apontou o revólver para a mulher.

— Se fizesse isso você trabalharia para nós?

— Americanos e russos se odeiam, por que teríamos qualquer elo confiança?

— Porque ou você faz isso para salvar a própria pele ou será morta por alguém da KGB apagando os arquivos. E pode confiar, sem mim para protegê-la você não sai viva hoje da Alemanha.

Irina não sabia o que fazer, tudo aquilo podia ser um ardil para algo maior, poderiam fazê-la de peão de um jogo que ela não teria nenhuma escolha. Entretanto, as últimas horas tinham sido tão dolorosas e talvez movida pela sua recente perda ela estava fazendo o que fora treinada para não fazer. Colaborar com um inimigo.

— Feito! Me dê o nome, vou eliminar o bastardo e nos encontramos para sair dessa cidade infernal.

A mulher levou a mão até a manga do casaco e o afastou com o indicador para conferir as horas, soltou e encarou Irina.

— Ele vai entrar por aquela porta em instantes, seja rápida, um avião nos aguarda em Tempelhof. – Caminhou até a janela e esperou.

Irina mirou para a porta, escutou a fechadura sendo manuseada até que a porta se abriu, o homem entrou alerta, porém desarmado. Ela não podia e nem queria acreditar que justo ele havia a traído.

— Não posso crer que foi você Gustav! – o agente olhou para onde ela estava, a expressão dele era de medo, mas disfarçou assim que viu a outra mulher que estava presente.

— Não fiz nada camarada, foi esta mulher! – levantou o braço apontando o indicador para outra e nesse momento Irina observou o sangue no suéter no russo, ele estava sangrando, havia tomado um tiro, este disparado por Irina antes de conseguir fugir.

— Últimas palavras? – seu tom não dava qualquer escapatória para o outro.

— Isso tudo foi culpa sua! – mal terminara e falar e seu corpo tombava de costas para o chão com um único tiro no meio da testa.

A mulher se aproximou de Irina e pôs a mão em seu ombro.

— Podemos ir?

A russa olhou para a outra e assentiu e antes de deixarem o local Irina a questionou:

— Isso não acaba aqui, não é?

— Jamais, mas seremos nós a sobreviver.

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